Trechos de livros

Assim falou Zaratustra - Nietzche

A hora em que digais: 'Que importa a minha felicidade! É pobreza, imundície e conformidade lastimosa. A minha felicidade, porém, deveria justificar a própria existência.'
A hora em que digais: 'Que importa minha razão! Anda atras de saber como o leão atrás do alimento? A  minha razão é pobreza, imundície e conformidade lastimosa.'
A hora em que digais: 'Que importa minha virtude! Ainda me não enervou. Como estou farto do meu bem e do meu mal. Tudo isso é pobreza, imundície e conformidade lastimosa.'
A hora em que digais: 'Que importa minha justiça! Não vejo que eu seja fogo e carvão! O justo porém é fogo e carvão!'
A hora em que digais: 'Que importa minha piedade? Não é a piedade a cruz onde se crava aquele que ama os homens? Pois minha piedade não é uma crucificação'

Já falastes assim? Ah! Quem me dera ter-vos ouvido gritar assim!




O coração amarelo - Pablo Neruda
Enigma para intranqüilos

Pelos dias do ano que virá
encontrarei uma hora diferente,
uma hora de cabelos em catarata,
uma hora nunca mais transcorrida,
como se o tempo se rompesse ali
e abrisse uma janela: um buraco
por onde deslizar-nos até o fundo.

Bom, aqule dia com aquela hora
chegará e deixará tudo mudado:
não se saberá jamais se ontem foi-se
ou o que volta é o que não se passou.

Quando do relógio cair uma hora 
ao solo, sem que ninguem a recolha,
 e ao fim tenhamos amarrado o tempo,
ai! saberemos por fim onde começam
ou onde terminam os destinos,
porque no trecho morto ou apagado
veremos a matéria das horas
como se vê a pata de um inseto.

E disporemos de um poder satânico:
voltar atrás ou acelerar as horas,
chegar ao nascimento ou à morte
como um motor roubado ao infinito.



Conto sem título e de um livro que ainda não foi lançado, mas que espero que um dia seja.
Sergio Matias


           Depois de mais uma noite fria e suja, permeada por cochilos, gemidos e desesperos soltos ao ar, o Sr. T acorda, desperto por uma sensação incômoda de vigília alheia, o dia vai surgindo, emergindo do mergulho escuro e profundo as formas acinzentadas e abissais de toda esta cidade que ele já conhecia como às cicatrizes de seu corpo nauseabundo e fétido.
            Ele olha ao redor, nessa noite não dormiu protegido entre as pernas dos heróis da pátria, aprisionados no sufocante torpor do concreto, com seus olhos frios e suas firmes patas, condenados a uma eternidade de desejetos de pássaros. Essa noite, ficou até muito tarde, observando a monstruosa máquina que movimenta as engrenagens enferrujadas da cidade ir se desvanecendo pouco a pouco, sentindo no ar, que teimosamente insiste em respriar, o bafejo pestilento desses organismo paranóico, monstro secular que range alucinadamente alimentado pela teimosia de continuar vivendo de pessoas como o Sr. T.
            Ficou ali, inerte, ouvindo os silvos metálicos e os estrondos cataclísmicos, até que tudo, aos poucos foi ficando mais distante, e enfim, a solidão, aquela que o esperava pacientemente, tomou assento, pousou os olhos infinitos sobre os seus e beijou-lhe delicadamente a face...
            Do alto daquele velho prédio, em meio às sobras do que um dia chamaram de vida, o Sr. T comtemplou os espessos volumes ásperos, dos blocos geometricamente dispersos dentro da organização daquele caos morinbundo que ele tentava decifrar. Não conseguia compreender a razão de tudo aquilo, nada, absolutamente nada que compunha aquele emaranhado de relações torpes desmonstrava sentido algum. Pensou algumas vezes em lançar-se no vazio sem fim, testar as asas que nunca ruflaram, mas, ainda não valia a pena, apesar de tudo, alguma coisa lhe dizia, lá nas profundezas do seu ser, que ele deveria ficar ali, examinando a debilidade coletiva de ienas rastejantes espreitando-as  como o algoz silencioso à espera do vacilo da presa moribunda.
            Mas agora, a manhã chegou de repente, mostrando a pele chumbosa e pétrea de um céu que mais parecia uma gigantesca casca enrrugada que iria desabar a qualquer momento sobre a sua cabeça, sensação insuportavel esta, ainda lembrava, quando criança, podia olhar as estrelas e contemplar o azul abissal de um céu de verdade,  não estava mais acostumado com isso e essas lembranças associava sempre à certeza de perda total e corroborava com seu sentimento desesperado e mudo, que ele tentava sufocar a qualquer custo, de que o peso a indiferença jpa se tornara insuportavel e fora dos limites do controle. Sabia que tinha que realizar algo significativo, mas não sabia o quê.
            Observava, dia após dia, aquele amontoado de gente sem direção, travando batalhas inúteis consigo mesmos por migalhas atiradas pelos donos da matilha que se regozijavam em vê-los engalfinharem-se num espetáculo de demência coletiva. Sim, aquela gente não tinha mais vida, eram mortos vivos, resquícios de dignidade não possuíam mais, tinham a falsa certeza do poder que as coisas acreditavam possuir lhes proporcionavam, não imaginavam que eles eram os possuídos pelas coisas. "Coisas possuídas por coisas", pensava o Sr. T, dessa forma, conseguira suportar o dia após dia, estabelecer-se à margem do sistema central controlador da máquina, era apenas uma engrenagem defeituosa, posta num papel secundário, sua vida, suja e improdutiva deveria valer menos que os aparelhos eletrônicos e todo o lixo tecnológico vomitado pela máquina, que todos tê que sorver satisfatoriamente.
           Tentava desperadamente encontrar uma saída, uma porta,  que o tirasse dessa estrada paralela, que o tirasse de todas as estradas, e não só a ele, todos deveriam seguir pelo caminho procurado, ultrapassar os limites tão bem vigiados onde todos têm que estancar, nunca ir além, pois, nos ensinaram, nas escolas para treinar as engrenagens, que os limites nunca devem ser ultrapassados, que existem regras a cumprir nessa frágil coisa que insistiram em denominar sociedade. "Melhor seria chamar de ajuntamento", pensou o Sr T, bonecos expostos numa imensa vitrina,  bonecos inanimados, zumbis. Do alto daquela velha construção, a sensação de incômodo começava a corroer as entranhas mornas do Sr T. tinha que encontrar uma solução, precisava deseperadamente disto, o início daquela nova manhã tinha trazido algo de extremamente inquietante, um leve tremor percorreu todo o seu corpo cansado, algo estava para acontecer, ele pressentia, não sabia exatemente o quê, mas era algo enorme, algo que mudaria para sempre aquilo que ele teimosamente chamava de vida, sabia que tinha um papel importante mas não sabia qual, e esta sensação de estar perdido num universo de interrogações e angústias desbaratadas começava a deixa-lo sufocado.
              A manhã agora já tinha tomado todos os espaços, expulsando pouco a pouco a massa espessa das trevas que protegiam dos olhos da máquina voraz os seres tétricos que teimosamente sempre estiveram ali. Já conseguia sentir os odores de hálito quente da indesejada manhã. Decidiu que hoje não iria esgueirar-se por entre becos e calçadas, não iria procurar com seus olhos baços os olhos de outrem e encarar as desgraças de ambos espelhadas no horror daquele fitar infinitesimal. Não, daquele dia em diante, não precisava mais disto, naquele momento tinha que buscar as respostas que tanto almejava, e olhando de cima, as formigas operárias sorridentes e nervosas que pouco a pouco iam tomando seu lugar na sistemática de mais um dia na linha de produção, sentiu todo o desprezo de mundo, seus olhos flamejaram, todas as veias, que antes tinha plena certeza que funcionavam como córregos fétidos de um líquido pútrido e indolor, agora pareciam rios, imensas avenidas por onde escorriam o mais destrutivo dos ácidos, bombeado por um coração inchado e saturado de entoar uma cadencia ridícula e vulgar, agora parecia que carregava dentro do peito todos os trovões do mundo e que enchiam as veias de seu cérebro com tal vigor que parecia-lhe que sua cabeça iria estourar e seus musculos desintegrarem-se e sentiu todos os seus ossos rangerem como um velho navio, há séculos vagando sem direção com um almirante silencioso prostrado inerte buscando o fim de um horizonte longínquo.
          Desceu correndo as escadas que o levaria às respostas, lancinante, seus movimentos pareciam um troar de ossos se partindo, desceu aqueles corredores e escadas num vagar demente, lancinate, seus movimentos pareciam um troar de ossos se partindo, desceu aqueles corredores e escadas num vagar demente, logo estaria a luz. Abriu a velha porta das ilusões perdidas e sabia que nunca mais voltaria a cerrá-la e correu como nunca havia corrido antes, seus olhos emboataram-se em lágrimas, foi impossível conter o choro que irrompia acompanhado de urros lancinantes por entre as pessoas que olhavam num misto de desprezo e horror, sim, desprezo e horror, ele, já não vislumbrava mais nada, apenas corria, em busca de que, nunca se soube, pouquíssimas testemunhas relataram que nunca viram um instante de alegria tão verdadeiro e profundo quando o que viram no segundo de oportunidade que tiveram antes de testemunhar aquele corpo esmagado pelo caminhão que vagava sem tempo, dizem que os olhos,  que rolaram no asfalto morno como bolas, ainda espelhavam a luz e as lágrimas no momento em que os cães rasgaram-nos vorazmente, engalfinhando-se pelas últimas migalhas do que fora o Sr. T.





Ensaio sobre a cegueira
Saramago

Passada uma semana, os cegos malvados mandaram recado de que queriam mulheres. Assim, simplismente, Tragam-nos mulheres. Essa inesperada, ainda que não de todos insólita, exigência causou a indignação que é fácil imaginar, os aturdidos emissários que vieram com a ordem voltaram loga lá para comunicar que as camaratas, as três da direita e as duas da esquerda, sem excepção dos cegos e cegas que dormiam no chão, haviam decidido, por unanimidade, não acatar a degradante imposição, objectando que não se podia rebaixar a esse ponto a dignidade humana, neste caso feminina, e que se na terceira camarata lado esquerdo não havia mulheres, a responsabilidade, se a havia, não lhes poderia ser assacada. A resposta foi curta e seca, Se não nos trouxerem mulheres, não comem. Humilhados, os emissários regressaram às camaratas com a ordem, O vão lá, ou não nos dão de comer. As mulheres sozinhas, as que não tinham parceiro, ou não o tinha fixo, protestaram imediatamente, não estavam dispostas a pagar a comida dos homens das outras com o que tinham entre as pernas, uma delas teve mesmo o atrevimento de dizer, esquecendo o respeito que devia as seu sexo, Eu sou muito senhora de lá ir, mas o que ganhar é para mim, e se me apetecer fico a viver com eles, assim tenho cama e mesa garantida. Por estas inequívocas palavras o disse, mas não passou aos actos subsequentes, lembrou-se a tempo do mau bocado que iria ser se tivesse de aguentar sozinha o furor erótico de vinte machos desenfreados que, pela urgência, pareciam estar cegos de cio. Porém, esta declaração, assim levianamente proferida na segunda camarata do lado direito, não ciu em cesto roto, um dos emissários, com particular sentido de ocasião, deitou-lhe logo a mão para propor que se apresentassem voluntárias ao serviço, tendo em conta que o que se faz de moto próprio custa em geral menos do que o que tem de fazer-se por obrigação. Só um derradeiro cuidado, uma última prudência o impediram de rematar o apelo citando o conhecido provérbio Quem corre por gosto, não cansa. Mesmo assim, os protestos explodiram mal ele acabou de falar, saltaram as fúrias de todos os lados, sem dó nem piedade os homens foram moralmente arrasados, apelidados de chulos, de proxenetas, de chupistas, de vampiros, de exploradores, de alcoviteiros, conforme a cultura, o meio social e o estilo pessoal das justamente indignadas mulheres.[...]lançou-se uma nova acha à fogueira quando perguntou, irónica, E o que é que vocês fariam se eles, em vez de pedirem mulheres, tivessem pedido homens, o que é que fariam, contem lá para a gente ouvir. As mulheres rejubilaram, Contem, contem, gritavam em coro, entusiasmadas por terem encostado os homens à parede, apanhados na sua própria ratoeira lógica de que não poderiam escapar, agora queriam ver até onde ia a tão apregoada coerência masculina, Aqui não há mariscas, atreveu-se um homem a protestar, Nem putas, retorquiu a mulher que fizera a pergunta provocadora, e ainda que as haja, pode ser que não estejam dispostas a sê-lo aqui por vocês. Incomodados, os homens encolheram-se conscientes de que só haveria uma resposta capaz de dar satisfação às vingativas fêmeas, Se eles pedissem homens, nós iriamos, mas nem um deles teve coragem de pronunciar estas breves, explícidas  desinibidas palavras, e tão perturbados ficaram que nem se lembraram de que não haveria grande perigo em dizê-las, uma vez que aqueles filhos de puta nao queriam desafogar-se com homens, mas com mulheres.
[...] O primeiro cego começara a declarar que mulher sua não se sujeitaria à vergonha de entregar o corpo a desconhecidos em troca do que fosse, quem nem ela o quereria nem ele o permitiria, que a dignidade não tem preço, que uma pessoa começa a ceder nas pequenas coisas e acaba por perder todo o sentido da vida. O médico perguntou-lhe então que sentido da vida via ele na situação em que todos se encontravam, famintos, cobertos de porcaria até as orelhas, roídos de piolhos, comidos de percevejos, espicados de pulgas, Também eu não quereria que a minha mulher lá fosse, mas esse meu querer não serve de nada, ela disse que está disposta a ir, doi a sua decisão, sei que o meu orgulho de homem, isto a que chamamos de orgulho de homem, se é que depois da humilhação ainda conservamos algo que mereça tal nome, sei que vai sofrer, já está a sofrer, se queremos viver, Cada qual procede segundo a moral que tem, eu penso assim e não tensiono mudar de ideias, retorquiu agressivo o primeiro cego. Então  a rapariga de oculos escuros disse, Os outros não sabem quantas mulheres há aqui, portanto você poderá ficar com a sua para seu exclusivo gasto, que nós os alimentaremos, a si e a ela, sempre quero ver como se irá sentir de dignidade depois, como lhe vai saber o pão que nós lhe trouxermos, A questão não é essa, começou o primeiro cego a responder, a questão é, mas ficou com a frase no ar, na verdade não sabia qual era a questão, tudo quanto ele havia dito antes não passava de umas quantas opniões avulsas, nada mais que opiniões, pertencentes a outro mundo, não a este, o que ele deveria, isso sim, era levantar as mãos ao céu e agradecer a sorte de poderem ficar-lhe, por assim dizer , as vergonhas em casa, em vez de saber-se sustentando pelas mulheres dos outros. O silêncio que se seguiu pela frase interrompida pareceu ficar à espera de que alguem aclarasse definitivamente a situação, por isso não tardou muito para que falasse quem tinha de falar, foi ela a mulher do primeiro cego que disse sem que a voz lhe tremesse, Sou tanto como as outras, faço o que elas fizerem, Só fazes  o que eu mandar, interrompeu o marido, Deixa-te de autoridades, aqui nao te servem de nada, estás tão cego como eu, É uma indecencia, Está na tua mão não seres indecente, a partir de agora não comas, foi esta a cruel resposta, inesperada em pessoa que até hoje se mostrara dócil e respeitadora do seu marido. Ouviu-se uma brusca risada, era a criada do hotel,  Ai, come, come, que há-de lhe fazer, coitado, de repente o riso converteu-se em choro, as palavras mudaram, Que havemos nós de fazer, disse, era quase uma pergunta, como um desalentado abanar de cabeça, tanto assim que a  empregada do consultório não fez mais do que repeti-la, Que havemos nós de fazer.



A arte de escrever
Schopenhauer


Ler significa pensar com uma cabeça alheia, em vez de pensar com a própria. Nada é mais prejudicial ao pensamento próprio - que sempre aspira desenvolver um conjunto coeso, um sistema, mesmo que não seja rigorosamente fechado- do que uma influência muito forte de pensamentos alheios, provenientes da leitura continua. Porque esses pensamentos, cada um originado de um espírito diferente, pertencem a um sistema diferente, colorido de modo diferente, e nunca compõem por si mesmos um conjunto de saberes, de idéias e de convicções. Em vez disso, eles produzem em nossa cabeça leve confusão babélica de línguas, e o espírito sobrecarregado por elas perde toda sua clareza e fica como que desorganizado. esse estado é perceptível em muitos eruditos e faz com que eles sejam inferiores, em termos de saúde do entendimento, do discernimento e praticidade, a muitos iletrados que sempre subordinaram ao próprio pensamento seu conhecimento limitado, adquirido de fora pela experiência, pelas conversas e pelas leituras, sendo capazes de se apropriar desse conhecimento. É precisamente isso que faz numa escala maior, o pensador cientifico. Só que ele precisa de muitos conhecimentos e, por isso de muita leitura. Seus espirito é suficiente forte para dominar tudo isso, assimilá-lo, incorporá-lo ao sistema de seus pensamentos, subordinando o que lê ao conjunto orgânico e coeso de sua compreensão abrangente, em continuo desenvolvimento. Dessa maneira, seu próprio pensamento, como as notas mais graves tocadas em um órgão, controla sempre todo o resto e nunca é suplantado por sons alheios como acontece, tons se misturassem confusamente, tornando impossível ouvir o tom fundamental.


O pequeno principe


XXI

E foi então que apareceu a raposa:
-Bom dia, disse a raposa.
-Bom dia, respondeu polidamente o principezinho, que se voltou, mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
-Quem és tu? perguntou o principezinho. Tu és bem bonita...
-Sou uma raposa, disse a raposa.
-Vem brincar comigo, prpôs o principezinho. Estou tão triste...
-Eu não posso brincar contigo, disse a rapoza. Não me cativaram ainda.
-Ah desculpa, disse o principezinho.
Após uma reflexão, acrescentou:
-Que quer dizer cativar?
-Os homens, disse a rapoa, têm fuzis e caçam. É bom incômodo! Criam galinhas também. É a única coisa interessante que eles fazem. Tu procuras galinhas?
-Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?
-É uma coisa muito esquecida, disse a raposa.  Significa "criar laços..."
- Criar laços?
-Exatamente, disse a raposa.  Tu não és ainda para mim senão um grato inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Nã passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
-Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor... eu creio que ela me cativou...
-É possivel, disse a raposa. Vê-se de tanta coisa na Terra...
-Oh! não foi na Terra, disse o principezinho.
A raposa pareceu intrigada:
-Num outro planeta?
-Sim.
-Há caçadores nesse planeta?
-Não.
-Quem bom! E galinhas?
-Também não.
-Nada é perfeito, suspirou a raposa.
Mas a raposa voltou à sua idéia.
-Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passaos me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará  lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento do trigo...
A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
-Por favor... cativa-me! disse ela.
-Bem quisera, disse o principizinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
-A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se queres um amigo, cativa-me!
-Que é preciso fazer? perguntou o principezinho.
-É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim,  na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás mais perto...
No dia seguinte o principezinho voltou.
-Teria sido melhor voltares à mesma hora. Se tu vens, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração... É preciso ritos.
-Que é um rito? perguntou o principezinho.
-É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um rito. Dançam na quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta então é o dia maravilhoso! Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam iguais. E eu não teria férias!
Assim o principezinho cativou a raposa. Mas quando chegou a hora da partida a raposa disse:
-Ah. Eu vou chorar.
-A culpa é tua, disse o principezinho, eu não te queria fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...
-Quis, disse a raposa.
-Mas tu vais chorar! disse o principezinho
-Vou, disse a raposa.
-Então, não sais lucrando nada!
-Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo. Depois ela acrescentou:
-Vai rever as rosas. Tu compreenderás que a tua é a única no mundo. Tu voltarás para me dizer adeus, e eu te farei presente de um segredo.
Foi o principezinho rever as rosas:
-Vós não sois absolutamente iguais à minah rosa, vós não sois nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativaste a ninguém. Sois como era minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Ela é agora única no mundo.
E as rosas estavam desapontadas.
-Sois belas, mas vazias, disse ele ainda. Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é, porém, mais importante que vós todas, pos foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob redoma. Foi a ela que abriguei com um pára-vento. Foi dela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se ou memso calar-se algumas vezes. É a minha rosa.
E voltou, então, à raposa:
-Adeus, disse ele...
-Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
-O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
-Foi o tempo que perdeste  com tua rosa que fez tua rosa tão importante.
-Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
-Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu é responsável pela rosa...
-Eu sou responsável pela rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar...